"Experiência 01", preparação da instalação do Colectivo Suspeito na Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 4 de novembro de 2022. Fotografia © Colectivo Suspeito.
Diário de Bordo
por Diogo Sottomayor
Quarto dia
O Coletivo Suspeito tinha como proposta: “um espaço liminar entre cumplicidade e contemplação”. Para tanto, através de aparelhos eletrónicos aplicados numa parte do corpo da pessoa que o quisesse utilizar, esse mesmo corpo, através do movimento, distância do recetor, e intensidade, criava uma paisagem sonora. Aqui, neste espaço, o criador convoca a sua coreografia, ou apenas movimentos que improvisa para os partilhar de forma externa e, de imediato, recebe um estímulo da máquina. A partir daqui, a relação é construída pela interação estabelecida entre quem mexe e a máquina que reage, por vezes em duplas, onde há uma nova camada, os dois corpos que interagem e criam um jogo, sendo certo que o olhar de ambos também é influenciado pela reação da máquina. Uma espécie de tradução de movimento para som. Universo que foi explorado por outra criadora, mas que não está neste dia. Por agora, resta-nos devolver o equipamento para irmos à multiversidade.
Saída
"Experiência 01", registo fotográfico da instalação pelo Colectivo Suspeito. Idem.
Há uma coisa certa quando entramos num espaço criado por Rogério Nuno Costa: qualquer coisa pode acontecer. Aliás, para quem acompanha o seu trabalho, sabe que ele pode “ir a nossa casa”. Pode cozinhar para nós. Também pode aparecer noutras criações sobre festas de anos. Ou pode surgir como júri de um espetáculo sobre Eurovisão. Ou pode estar todo vestido de verde. Pode estar a falar, ou pode estar em silêncio. Pode apenas estar. Um trabalho dele não se esgota no texto, na forma ou no local. Rogério trabalha em qualquer lugar, e, por isso, nada melhor que estarmos, agora, num tempo qualquer. Podemos escolher se é agora, se será daqui a muitos anos, ou se até já foi num tempo passado (e encontramo-nos, agora, numa espécie de eco do passado). Rogério não tem a intenção de um tempo. A multiversidade ainda não tem espaço. Mas espera vir a ter. Mas não faz questão que tenha. A explicação é complexa, mas Rogério explica-a detalhadamente, numa autêntica tese; uma tese que, não obedecendo à série de formalismos que o ritual tese obriga, é então a especulação de uma tese. Mas na verdade é uma tese. Ele escreveu. Ele citou. Ele relacionou. E questionou. Até que ponto este “oficial”, este “académico”, este “a sério” vai ficar preso a uns monumentos brutos, que, como bem sabemos, estão podres? Tal como o rei vai nu, também sabemos que a universidade vai nua. E devemos continuar a perpetuar esta ideia de sabedoria centrada apenas num lugar? A autora norte-americana Michelle Visage é peremptória:
“Não. A universidade não pode continuar a aparecer em todos os locais como um pedaço de tecido. Porque é apenas isso. E um pedaço de tecido não é um vestido”. Tal como a universidade não devia ser apenas calças e gravatas; mas isto das roupas é muito mais complexo... Complexo é também o pensamento de Rogério (nota de rodapé: Isto é dito porque sim): “O texto que estou a ler é uma emanação, etérea e intangível, da tese que não vou, não quero, ou não posso ler, e projeta-se em várias direções temporais e emocionais: para trás dela, para a frente dela, para dentro dela. Nunca por causa dela. Nunca sobre ela. O avesso da tese”. Podem agora jogar pedra, tesoura e papel. Eu ajudo: na próxima jogada vou escolher papel. No meio do aleatório, pode saber bem uma certeza:
Pausa para jantar e pensar.
Peça da noite.
[Nota: neste espectáculo eu participei como intérprete. Portanto, o que vão ler a seguir não é um olhar de fora, exterior. É um olhar de dentro.]
“Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar. As preocupações são aflições do espírito adaptadas à era capitalista. Não estamos mais preocupados com os devaneios, as angústias e com o mistério da existência. Nossas preocupações são as preocupações da agenda, se iremos ter aonde morar, se iremos ter onde dormir e se iremos ter o que comer. Trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar.”
Estas são as primeiras palavras que Vinicius Massucato entrega ao público.
Eu espero.
Ele parte a cadeira.
Eu espero.
Conheço o Vinicius há muitos anos. Mas hoje não o vejo de fora. Hoje é para performar com ele.
Ele continua a falar. Há texto na tela. Conheço-o há tantos anos, já o vi fazer tanta coisa, e hoje estou aqui. À espera. Uma flor. Uma mochila. Um casaco.
Chegou a deixa.
O beijo aconteceu. O texto foi dito. A música acabou.
No fim, alguns dos primeiros comentários são sobre o beijo. Perguntei-me, assim como quem não quer a coisa, quantas vezes vi beijos normativos em cena serem tão comentados. Não me recordo de nenhum. Duas pessoas lidas como homens em cena a beijarem-se, parece, ainda, ser necessário. É um ato político.
"As Aflições do Espírito" de Vinicius Massucato com Diogo Sottomayor. Cineteatro António Lamoso, 4 de novembro de 2022. Fotos © Colectivo Suspeito.
Diogo Sottomayor
Registo fotográfico realizado por Jani Nummela (4 de novembro de 2022). Artistas: Rogério Nuno Costa, Mariana Barros, Tiago Rosário, Vinicius Massucato e Jorge Gonçalves. Espaços: Black Box do Imaginarius Centro de Criação, Foyer e Palco do Cineteatro António Lamoso.
Sobre "Multiversidade" de Rogério Nuno Costa
por Alexandra Couto
Psique e filosofia em spoken word. Dicção sem mácula, timbre au point. Terrena ou cósmica, a matéria expõe-se na volatilidade do pixel. Umas vezes a essência é justa, outras esquiva… Mas em tudo, omnipresente e indefetível, prevalece o cativeiro sensorial daquela magnética e mesmerizante reverberação vocal.
"Multiversidade", conferência-performance de Rogério Nuno Costa. Black Box do Imaginarius Centro de Criação, 4 de novembro de 2022. Fotos de Alexandra Couto.
"As Aflições do Espírito" de Vinicius Massucato e "Especular o que está entre nós" de Jorge Gonçalves. Registo fotográfico da responsabilidade do Cineteatro António Lamoso, 4 de novembro de 2022:
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