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2º ENCONTRO DE ARTES PERFORMATIVAS

O DOBRAR DOS SINOS EM QUATRO DIAS

Diogo Sottomayor



O dobrar dos sinos em quatro dias.


Ser a observação externa de um encontro tem sempre coincidências a ocorrer. Ou acidentes. Neste caso, uma das partilhas e visitas deste encontro foi a um sino e, sobre isso, no terceiro dia relato com mais pormenor.

O interesse nos sinos e no seu valor simbólico foi tanto, que optei por utilizar a sua matéria, a sua simbologia e factos interessantes sobre eles para pontuar textos, para procurar relações e potencialidades entre as várias partilhas e, ao mesmo tempo, aliar-me a esta senda de mostrar que os sinos não são apenas do patriarcado, e que mais corpos e mais pessoas podem tocar neles e, sobretudo, escrever sobre eles.




Factos sobre sinos I


Os bonshō (梵鐘), também chamados de tsurigane (釣り鐘) ou ōgane (大鐘), são grandes sinos de bronze presentes nos templos budistas do Japão, usados para convocar monges para a oração e para marcar o tempo. Em vez de terem um badalo no interior, são tocados no exterior com uma marreta ou barra suspensa.

O sino mais antigo registado no Japão data de cerca de 600 d.C., mas o seu design, de origem chinesa, é mais antigo e partilha características com antigos sinos chineses. O som dos bonshō pode ser ouvido a longas distâncias, levando ao seu uso como alarmes, marcadores de tempo e para transmitir sinais. Acredita-se também que o som dos bonshō tem propriedades sobrenaturais, podendo, por exemplo, ser ouvido no submundo.

O seu significado espiritual torna-os fundamentais nas cerimónias budistas, especialmente no Ano Novo Japonês e no Festival O-Bon. Ao longo da história do Japão, vários bonshō ficaram ligados a lendas e histórias, como o Sino Benkei de Mii-dera e o sino de Hōkō-ji. Atualmente, os bonshō são vistos como símbolos de paz mundial.




Observar da Torre.


A tarefa de observar criações, trabalhos em progresso ou workshops é sempre de uma negociação difícil. Por um lado, porque há trabalhos com os quais temos uma relação direta, noutros, a porta de entrada é mais complicada, e noutros casos ainda estamos a ver de dentro, o que implica que podemos ver menos.

O meu trabalho ao longo de quatro dias foi observar estes objetos em relação nos seus dias.

Aproveitando que este ano há um trabalho que trabalha a partir da história do sino e da sua composição aproveitei para criar, este ano, a observação de cada um dos dias pelo prisma do material plástico do sino, da sua função ou da sua activação.

Assim, aproveitando este espaço temporal aqui criado, esta reflexão que surge agora na versão escrita, convido quem viu, quem não viu, quem ouviu falar e quem queria ter estado e não conseguiu a vir nesta viagem de quatro dias.


São agora dezassete horas, o sino tocou cinco vezes e vamos começar.



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Dia 4 de setembro

A corda de iniciação.




Factos sobre sinos II


Os sinos são frequentemente vistos como a voz de Deus, anunciando tanto nascimentos como mortes, estando presentes em todos os momentos da vida religiosa. De forma semelhante, tinham a função de chamar para os ofícios religiosos, convocando tanto fiéis como clérigos. Os seus toques eram codificados, de modo que tanto o povo como o clero conseguiam identificar as suas mensagens: sabiam, por exemplo, se tinha falecido um homem, uma mulher ou uma criança, ou se estavam a ser chamados para ofícios comuns ou festividades, entre outros casos.

Os sinos regulavam o passar do tempo, acompanhando as celebrações do calendário litúrgico, marcando as horas e avisando para o início e fim do dia de trabalho. No entanto, a sua relevância social ia além disso, pois eram utilizados para alertar sobre ventos fortes, tempestades, desastres, incêndios e até eventos de guerra.1


O seu som, com uma natureza apotropaica2 e profilática, tem feito parte da paisagem sonora de aldeias, vilas e cidades há séculos. Por essa razão, cedo entraram no imaginário coletivo, sendo envolvidos em lendas e superstições que frequentemente lhes atribuíam propriedades premonitórias e volitivas, acreditando-se que previam e avisavam sobre acontecimentos importantes prestes a ocorrer.

Com esta imagem em mente, partimos em direção ao workshop do Collective Le Poeme en Volume onde é discutida a ideia de improvisação, a ligação dos objetos. Não raras vezes assistimos a objetos serem lançados ou utilizados de formas não convencionais para testar esta hipótese: O que ocorre? O que acontece? A procura deste coletivo baseia-se na imagem do gancho que apanha o peixe, nomeadamente no momento em que ele é puxado para fora de água. Como isolar o momento da decisão? E porque decidimos dessa forma?

Um dos intérpretes fala também da sua relação com o texto e como ele ganha outra vida aquando da sua ativação em pé. Indo mais longe na imagem e indicando que o texto é como uma guitarra que aprendemos a tocar. As relações entre texto e imagem surgem em vários momentos de ativação, como um puxar de corda e esperamos pelo som que surge depois. A meio da manhã somos ainda ativados a pensar na plasticidade do som e a meditar sobre os vários tipos de silêncio. Se é de antecipação, espera ou dramático. Ao mesmo tempo. Da mesma forma, quando se fala do futuro no som, é aquele tempo entre a ativação do instrumento e o som emitido. O futuro é isso, é saber que trabalhamos para um a seguir que ainda não ocorreu ou ainda não se ouviu, a potencialidade do objeto.

De outras potencialidades fala-nos também Catarina Real com o seu livro de Poemas: Cores.

Revelando a sua dificuldade em trabalhar com cores como o vermelho e o castanho e a sua relação com elas (que na pintura até as dava a outras colegas que as usavam) cria agora este livro onde a cor é utilizada como prescrição. A prescrição da cor, ou seja, esta relação de sujeito com uma determinada cor. Há também o desafio que lhe colocaram de responder ao cinzento, a cor que é utilizada na pintura para representar a passagem da testa para o couro cabeludo e como esse estímulo a obrigou a olhar com mais atenção para esse tipo de detalhes. Os poemas são em torno da cor em movimento, da cor em ação no quotidiano, íntima ou social. A partilha dos poemas, sobretudo com o título: “De dezembro a janeiro”, tem esta ligação ao número 12, que é também o número máximo das badaladas do sino. E, como forma de terminarmos esta passagem por Cores partilho o último poema lido, de nome FOGO FÁTUO:


«Tudo terá de ser lido duas vezes

para ser aprendido pelas mãos.»3


E depois de lermos duas vezes chegamos ao concerto de Henrique Fernandes e João Ricardo WEE – DUST MEMORIES onde, segundo os próprios, ouvimos um conjunto de fontes/materiais sonoros tanto acústicos como eletrónicos provenientes de fontes eletrónicas em elevado risco de inoperacionalidade e obsolescência, tais como reprodutores de áudio de vários formatos (leitores de CD, leitores de K7), rádios, televisores, telemóveis, entre outros, procurando esta relação no território do erro e do efémero. Nesse sentido eles destacam a não alteração ou manipulação das fontes originais, compuseram uma série de peças sonoras, que deram origem à edição fonográfica, editado pela Sonoscopia no ano de 2023 e agora em estreia absoluta nesta performance ao vivo.

A experiência estética deste concerto leva-nos para o imaginário criado pelos sons, uma espécie de escultura sonora que nos envolve. Ouvindo sons de outros tempos, de um passado. Se o coletivo francês discute a questão do futuro no som, aqui há esta remissão ao som passado, ao som efémero. A estas paisagens sonoras, como formas de sintonização com o passado ou que ouvindo nos invoca a imagem do rádio. São gotas sonoras que, gota a gota, montam em tempo real este património sonoro de dispositivos que estão em vias de extinção.

Em vias de extinção também está TUVALU. E Marina Leonardo, na sua partilha de processo de TUVALU ou o desaparecimento das coisas, um espectáculo de teatro sem a presença de atores criado em 2023 em cocriação com Nuno M Cardoso com a intenção de ser apresentado apenas uma vez (uma temporada de 6 sessões) e depois “desaparecer”. O tema da morte, nascimento e esquecimento estão presentes neste trabalho onde este percurso feito pelos espectadores (e onde existia um protocolo anterior para a escolha do percurso, nomeadamente através da resposta a perguntas como: Qual foi a última coisa que desapareceu da tua vida? E o que desapareceu completamente em ti?), onde cada espectador é levado a refletir de forma política sobre assuntos como a ecologia, com frases provocadoras relativamente à gestão de recursos do planeta, e a tomar consciência sobre o tempo, a existência, a mudança e a resiliência. Não bastando existir na condição de ser sobre este tema, mas o próprio objeto criado ter este cariz efémero e de condição de desaparecimento no final, tal como o sino que faz um aviso sobre algo que aconteceu localmente, e esse aviso se dissipa no ar. É também curioso pensarmos este trabalho na óptica do sino que dá sinais. Poderíamos até discutir se não estaríamos perante uma instalação onde somos convidados a mergulhar neste aviso inquietante que nos submerge e nos devolve ao quotidiano sob este aviso. Sabendo nós que ele desaparece no final.

No fim, devolvidos nós à realidade do final do primeiro dia, assistimos à partilha, ou melhor, ao convite a partilhar a praça e a blackbox com Tout le monde est invité uma improvisação site specific onde o público é convidado a habitar a improvisação. Um carro laranja surge da estação de comboios com a música “E depois do adeus” de Paulo Carvalho em direção ao Imaginarius. E habitamos aquele espaço com música electrónica e acústica, vídeo projetado em tempo real sob a Nave Central, dança contemporânea e poesia. Durante a partilha, vários são os momentos em que podemos participar ativamente em ser deslocados por corda, ou a ver Vasco Otero e Isabel Ariel na sua relação com a água e assistirmos em conjunto ao que surge a cada momento, a cada movimento que também Gaël Domenger performa em contacto com os outros corpos. O mesmo se passa com Donatien Garnier na sua partilha textual e na sua procura de relação física com o que está a ser dito. Yves Favier na sua procura e partilha de objetos com o público e a criação de momentos performativos com o público e György Kurtág Jr. onde nos inteiramos da sua prática de pesquisa gestual dos instrumentistas e de criação de novos instrumentos.

E com esta partilha termina assim o primeiro dia, deixando as marcas de giz no espaço como lastro da passagem desta apresentação até ao seu desaparecimento.

O sino tocou 11 vezes.

A corda foi puxada 11 vezes.



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1 Almeida, C. A. F. de. (1966). Carácter mágico do toque das campainhas: Atropaicidade do som. Em Revista de Etnografia (Vol. 6, Tomo 2, pp. 339–370). Porto: Junta Distrital do Porto. (p. 342)

2 apotropaico (a·po·tro·pai·co) adjectivo, Que pretende ter ou tem o poder de afastar o mal. = APOTROPEICO, APOTROPEU

3 Real, C. Cores. 2024.



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Dia 5 de setembro

A activação.




Factos sobre sinos III


As várias formas de tocar são linguagem convencional, que pode ir das simples badaladas, ao dobrar, ao toque picado, ao toque encadeado e ao toque repicado ou repenicado, que é o mais festivo. Tal linguagem continua a ser perfeitamente compreendida. Mesmo nas cidades, apesar dos ruídos, os sinais sonoros dos sinos não passam despercebidos.


O sino tocou 10 vezes.


Começamos o dia com o workshop de Mariana Tengner Barros EXCALIBUR. A própria assume fascínio pela forma como as pessoas se representam e mostram nos planos sociais de existência, e admite ainda sentir-se intrigada pelas tensões do parecer e ser e de como podemos viver mais próximos da nossa essência.

Ao longo da manhã articulamos os nossos corpos com o que Mariana chama de filtros de realidade elementais.

Com os elementos água, terra, ar e fogo somos desafiados a explorar estas formas no espaço exterior. Quer numa relação direta com água, sentir uma árvore, sentir fumo ou relacionar o nosso corpo com o sol. Sempre com esta ideia de corrente, de caminho. Depois, pensar no rio como nascente e delta e com essa imagem do seu curso levar os participantes a explorar movimentos em que a pessoa atrás fixa apenas numa pessoa para imitar o movimento. Tornar os nossos corpos uma corrente do rio que está em relação com um, mas que se liga ao todo.



A parte da tarde foi ocupada na reflexão do que é ser câmara, performer e testemunha. Num desses exercícios tínhamos de ser uma câmara oculta e partilho aqui o texto:


“Um almoço.

Discussão sobre a peça da noite.

Dinheiro, problema, porque havia outra, tinha algumas, os ovos também são para nós? Já levei? Mas era só uma?

Já não há pessoas assim. Está ali um telefone perdido.

Enciclopédico. Memória de elefante. Uma coisa da Vera no Alkantara... em 2006. Alguém que escreveu.

Comer, levantar, há mais? Sentar. Dança dos corpos que se estão a alimentar.

Querem que feche o portão? Para haver menos vento.

Sons de panelas. Talheres. Os que comem em silêncio.

Troca de risos. 66 anos? Mas sempre muito lúcido. Pedaços de pão.

Um homem que viveu intensamente os anos 80. Quando todos iam ao pride, eu também tudo à volta do Manuel Reis. O que é este movimento? Este percebo. Esse não percebo. Diz mais do que palavras, não é?

Enfim, um senhor.

Muito amargo.

Ai jesus!

Alguém tem uma camisola colorida. Alguém com uma t-shirt com a palavra missing.

O que falta neste almoço?”4


Este exercício ajudou-nos a refletir sobre a ideia de atenção, para onde ela recai. Para a forma como vemos os outros e como sentimos que eles interagem. E com esta ideia, então procurar relações nos exercícios e contaminar as nossas práticas com estas histórias e construir coisas novas.

Nas palavras de Mariana: “Abarcar-se-á o jogo, o jogar a sério, que é brincar, porque brincar é essencial para a perceção lúcida da realidade, desligada de autocensura e em sintonia com a curiosidade.”


E o que poderá ser melhor para o despertar sensorial do que refletir sobre modos de produção com Joclécio Azevedo em Uma coisa equilibrada entre duas coisas.

Numa relação de um para um, o artista convida-nos a passar 15 minutos deitados numa cama, num quarto individual, com material rejeitado de outros processos de trabalho, numa alegada acumulação de material «inútil» onde somos confrontados com esta ideia de modo de produção neste contexto de aceleração produtiva e escassez temporal, segundo as palavras do próprio.

Somos então ativados através do questionamento do próprio dispositivo. Sobre esta ideia do começo, é possível fugir ao início? E se ficássemos à espera, deitados, de algo que nunca acontecesse? E na nossa mente uma série de imagens surgem, a voz de Joclécio leva-nos a refletir sobre estas questões do fazer, do material, das concepções do que é e do que poderá ser. Uma linguagem que se coloca em causa, e, ao mesmo tempo, coloca a tónica nas coisas, porque elas também agem sobre nós.

E enquanto faz isso, o tempo vai passando e somos acordados com a frase final:

“E se o modelo nunca estiver completo?”


A resposta não é dada. Porém, não são os sinos que nos convocam, mas sim Miguel Pereira com a sua partilha 61 minutos onde o público é levado a experimentar a técnica da deriva, muito utilizada por Guy Debord (partindo de um lugar, a pessoa ou grupo que se lança à deriva seguirá uma rota indefinida, deixando que o meio urbano os ‘guie’ ao acaso, pelo caminho que segue.), e que aqui somos desafiados a uma caminhada errática, podendo ser, de acordo com o artista, contemplativa, visual e sonora.

Nesta caminhada temos o espaço urbano ou rural como espaço de conexões e potencialidades várias. Desde procurar novos locais que de outra forma não exploraríamos. Observar como é que o grupo se comporta e como toma decisões sobre qual o próximo caminho. Ter em atenção que o desafio é, sem relógio e em silêncio, ao final de 61 minutos voltarmos ao ponto de partida. Como comunicar em silêncio? E como avisar sobre os perigos? E se as luzes intermitentes remeteram à diversão noturna? E se encontrarmos um jardim a ser regado? E se encontrarmos um sapo em deriva?

Ao final dos 61 minutos não se ouve o sino, mas sim o alarme do telefone. Chegamos até ao destino e já podemos falar.


O sino agora sim, toca 11 vezes.


É o fim do segundo dia.



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4 Texto criado para o workshop de Mariana e escrito enquanto os artistas do encontro estavam a almoçar.



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Dia 6 de setembro

A memória do sino




Factos sobre sinos IV


Devido à sua vasta gama de usos, tanto simbólicos como funcionais, os sinos têm uma presença de séculos nas paisagens sonoras e na memória afetiva das populações. Dentro das suas funções destacava- -se, para além da marcação do tempo, o anúncio de nascimentos e mortes, alerta sobre incêndios, e ainda convocatórias para missas e outros ofícios religiosos. O seu toque indicava o início dos trabalhos nos campos e o momento de os terminar, sendo até arriscado continuar a trabalhar para além da hora assinalada.5


O sino tocou dez vezes.


E, dentro do tema de toque e intimidade, Carminda Soares e Maria R. Soares com Bright Horses - do gesto ao significado foi uma experiência imersiva que combinou práticas físicas e de expressão como o toque, o movimento, a voz e o diálogo. O objetivo principal proposto foi explorar e ressignificar os conceitos de família, afeto e competição, usando esses elementos como pontos de partida para uma reflexão mais profunda sobre as dinâmicas sociais.

Durante o workshop os participantes foram levados a refletir sobre as noções tradicionais de família, afeto e competição. O que levou a exercícios de partilha pessoal e a discussão sobre as perceções e experiências de cada um nesta fase da desconstrução de conceitos. No que concerne às práticas de corpo e movimento o uso do toque e do movimento foi usado em exercícios de confiança em pares e improvisações de movimento. Estes exercícios foram utilizados para ilustrar e vivenciar as emoções e tensões presentes nas relações familiares, como disputa, agressão e afeto. A voz também foi utilizada como expressão emocional, como forma de libertar tensões ou evocação de sentimentos associados a momentos como luto e despedida. O diálogo e a interação também foram utilizados para que o grupo tivesse este momento de partilha de experiências e levando à reflexão sobre como pequenas interações se relacionam com dinâmicas sociais maiores.

Dentro do tema da família esteve também Margarida Montenÿ com a partilha da pesquisa Boca de Sino, onde através da visita à capela da Nossa Senhora da Piedade, conhecemos a Senhora D.a Aida, filha da última sineira que tocou naquela capela, a Senhora D.a Palmira.

Começou a sua pesquisa a partir de uma curiosidade mecânica, isto é, entender as possibilidades ou exemplos de sistemas de roldanas e contrapesos utilizados em diferentes tipos de sinos e torres sineiras, uma vez que o seu trabalho parte sempre de uma relação entre mecânica e contrapesos na corda. Quer entender os sistemas para os poder manipular e utilizar para o convite de coprodução. No entanto, a procura dessas respostas práticas e, alegadamente, simples, fê-la chegar até este material extenso sobre sinos, com a dificuldade acrescida do património sineiro português ser muito frágil, não obstante a relação litúrgica e católica e a automatização dos sinos e consequente desaparecimento da profissão em Portugal.

Porém, vê-se imbuída numa tradição patriarcal muito forte onde descobre coisas como: “Acreditando que as mulheres têm um pacto com o diabo e, sendo o sino um instrumento divino, a presença das primeiras poderia comprometer o sucesso da fundição.”6.

Também por questões de toque do sino, em que no anúncio da morte, além de distinguirem entre homem e mulher, tocam três vezes no primeiro caso e duas no segundo.

A artista viu-se assim a pesquisar algo que, à partida, seria simples, como muito complexo e teve a sorte de encontrar uma mulher sineira, o que a inspirou a ir mais fundo na sua investigação e lidar com esta tradição maioritariamente masculina e demonstrando que o seu toque, a sua vontade, além de ter uma motivação intelectual tem também um cunho político muito forte.



E, por falar em mulheres, seguimos o nosso caminho em direção à próxima partilha, desta vez na Praça Central com Asta em ad murmuratio. O dispositivo cénico é composto por 14 cadeiras espalhadas pelo espaço e sete atores que aguardam pela nossa visita. As cadeiras, colocadas lado a lado em oposição, em forma de ‘S’ remetem para a cadeira conversadeira, cujo propósito era facilitar conversas íntimas entre casais ou momentos de confidência, o que justifica o nome “conversadeira”.



Esta performance/instalação pensada para o espaço público é ativada pelo público quando nos sentamos junto dos atores. É importante referir que não se trata apenas de dizer um poema ou partilhar um texto, trata-se de um momento de intimidade, dito em sussurro, quase como um murmúrio, das palavras imortalizadas pela poesia de Florbela Espanca.

O percurso entre as ‘conversadeiras’ é livre, cada pessoa pode circular livremente por cada uma, escolher a ordem e até repetir se assim lhe fizer sentido.

A plasticidade do trabalho é muito curiosa, a intimidade é trabalhada não só a partir da palavra, mas sim a partir de gestos: como segurar as mãos ou abraçar; objetos: um pequeno papel com um poema, um guardanapo com a impressão de um beijo com batom vermelho; experiência sensorial: através da venda, ou da música que é tocada para nós; ou o corpo como objeto técnico: em que nos é permitido escrever no corpo da atriz, como se de uma tela se tratasse, e com recurso a um eyeliner deixamos as nossas palavras no corpo dela. Apesar das experiências serem todas muito distintas, o caráter efémero permanece. É um encontro fortuito que se dissipa, tal como as frases escritas a lápis, que apenas registam a sensação do momento.

© DIOGO


No final do dia, visitamos o trabalho de Ana Dinger com O que é feito de si, Margarida Abreu?, segundo Ana o título escolhido foi tomado de empréstimo de um programa da RTP, do início dos anos 90, de autoria de Nunes Fortes e Paulo Alexandre que, em programas curtos, recordavam os rostos e memórias de algumas figuras portuguesas (...) nos campos das artes, desporto e espetáculo.

Assim, somos convidados a refletir sobre o arquivo da vida e obra de Margarida de Abreu (1915-2006) figura ímpar da dança portuguesa.

Segundo António Laginha: “Poder-se-á mesmo afirmar que, tendo em conta certas limitações que se reflectiram no seu longo percurso artístico, a sua influência foi particularmente importante num período em que a pedagogia e a profissionalização no bailado em Portugal eram, praticamente, inexistentes.” (Laginha, 2014)7

Com efeito, Ana Dinger, que tem acesso ao espólio da artista cedido pela família de Margarida de Abreu, começa a sua apresentação indicando as imprecisões históricas do programa da RTP, organiza todo o espaço da Nave Central para expor este arquivo, ao mesmo tempo que projeta as várias fotografias que digitalizou onde é possível seguir uma linha temporal dos trabalhos da coreógrafa que têm mais de 60 anos de atividade.

Para refletir sobre a ideia de arquivo recordo-me sempre deste texto de Miguel Leal: “O arquivo vive pois encaixado entre essas duas noções primeiras, de um lado a ideia de origem, de começo, a ideia do arquivo como traço fundador, e, por outro, a ideia de arquivo como mandato, como ordem instituidora, como lugar onde se exerce a autoridade. O arquivo conserva e institui. Pensar no arquivo é assim pensar, em primeiro lugar, na economia do arquivo. E se não há corpo sem arquivo, diria que não há arquivo sem um corpo, sem uma economia que é antes de mais a economia dos corpos que o constituem e que a partir dele se enunciam.” (Leal, 2014)8 Para refletirmos sobre a ideia de arquivo a primeira ideia que me surge é: e quem não teve arquivo? Quantas figuras foram esquecidas? Quem tem acesso e pode fazer arquivo? E de que forma foi arquivado? Pode o arquivo ser a forma com mais acuidade para contarmos a história de alguém? Quais são as suas limitações? E, no caso das pessoas, que tal como Margarida Abreu, tinham a possibilidade de o ter, porque é que mesmo assim foram esquecidas?


Agora não temos de tocar o sino, mas sim evocar as suas 11 badaladas.


Fim do terceiro dia.



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5 Almeida, C. A. F. de. (1964). Senhora da Abadia. Em Revista de Etnografia (Vol. 2, Tomo 2, pp. 303– 308). Porto: Junta Distrital do Porto. (p. 342)

O DOBRAR DOS SINOS EM QUATRO DIAS

6 Magalhães, A. (1999). Monografia de Rio Tinto- Apontamentos monográficos (Vol. 1). Junta de Freguesia de Rio Tinto. (p. 211)

7 Laginha, A. (2014). Memória da Saudade: o percurso e identidade artística do Ballet Gulbenkian como estrutura de referência na dança portuguesa (1961-2005). Tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra. (p. 89)

8 Leal, M. (2014). O corpo como arquivo, o arquivo como corpo. Em D. Carvalho, F. Teixeira, J. Brojo, D. Cannatà, & M. Leal (Coord.) (Eds.), Kraft #1 (pp. 23–29). i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. (p. 27)



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Dia 7 de setembro

A Matéria do Sino



Factos sobre sinos V


Existe uma correlação directa entre o diâmetro da abertura, o peso total do sino e o tom, ou seja, a nota musical que este irá produzir.9


O último dia surge com a ausência do tocar do sino. D1V3R: uma possível partitura para não esquecer de pensar.10 de Filipa Duarte teve início às 15h15.

Neste seu trabalho em progresso Filipa partilha parte da sua história na dança e no BCN, ao mesmo tempo que partilha as suas inquietações sobre este seu hiperfoco constante em coisas tão distintas. A partilha passa pelos seus momentos em workshops, recordações da primeira vez que dançou para o BCN, discute o que é uma ideia de limpeza e o que é uma ideia artística ao mesmo tempo que, através do seu corpo e da sua géstica, mostra que materiais, situações e objetos lhe roubam a atenção.

Com especial relevo nas questões da saúde mental e no bem- estar de pessoas que não se sentem confortáveis em ambientes pouco ou nada diversos. Plasticamente, a artista colaborou com Rui Ferreira que acompanha o trabalho em cena com uma guitarra e Ricardo Nogueira Fernandes que criou o espaço sonoro onde o corpo da coreógrafa habita com recurso à síntese granular, que vai evoluindo ao longo da peça criando relações com o texto e o movimento. No que concerne ao vídeo, a edição esteve a cargo de Manuel Monteiro.


Na ausência dos corpos das pessoas em cena, a figura da legenda surge como evocação de algo que passou, ou, neste caso, de uma tentativa de possível fim. Como indica Filipa na peça: “Também acho importante referirmos, algures, que isto não é um trabalho final, não é estanque, a criação não está limada, acabada, mas também não é inacabado, também não foi procrastinação.

Eu acho que quem diverge vai perceber. Na verdade, quem é hiper é assim.

Começa e sente que nunca acaba... e eu não tenho mais texto.”

Aproveitando a deixa dada, porque também não tenho mais o que acrescentar, passamos agora para Henrique Furtado Vieira e Lígia Soares, que discutem, literalmente, o fim de um mundo como o fomos conhecendo, numa das performances da coleção Morrer Pelos Passarinhos. Cada um dos performers (Henrique com um discurso mais à direita, e Lígia com um discurso mais à esquerda) nesta espécie de teatro invisível, discutem temas fraturantes da atualidade, onde a cada fala o discurso se torna cada vez mais violento e mostrando que o diálogo não ocorre. Há um momento em que surge um ‘ativista’ que atira um balão de água a Henrique e, a partir desse conflito, desenrolam-se uma série de discursos e ataques entre ambos, onde ninguém é salvo. Falam sobre carreira, filhos, atos políticos, sobre a roupa que usam e até mesmo da forma como, alegadamente, estão sempre sem roupa em cena.

Há momentos em que o absurdo é levado ao extremo, onde, por exemplo, Lígia diz: “Henrique, deixa-me dizer-te uma coisa. Tu nem a reciclagem fazes. Eu vi-te a deitar a embalagem de plástico da salada que compraste ontem no Pingo Doce (...)” ou quando Henrique diz: “Sabes qual é a melhor coisa que eu faço pelo ambiente? É estar regularmente desempregado, consumir poucos recursos e criar poucas peças.”. O que leva o público a relacionar-se com este tipo de discussão, que podia ocorrer em qualquer caixa de comentários numa rede social ou num discurso político, porque num diálogo sem partilha, muitas vezes os exemplos mencionados numa discussão são apenas argumentos ad hominem. No entanto, neste caso em concreto é curioso que a discussão é tida em ‘praça pública’ onde no final somos desafiados a lançar os balões sobre Henrique. Aqui, pode ser interessante, por exemplo, ver como este tipo de performance reverbera tendo em conta os espaços onde ela é feita. Neste caso, aqui no Imaginarius, a performance deixou um rasto plástico na parede e o resultado são os restos de balões numa parede.

Mais um momento em que se deixa uma marca efémera e mais uma tentativa de arquivar.



O dia continua com Fernando Mota em Concerto para uma árvore. Fernando é um artista profundamente ligado à experimentação sonora e à criação de performances que integram elementos naturais e instrumentos inventados. O seu trabalho transcende a música tradicional, utilizando materiais como árvores, ramos e rochas para construir instrumentos musicais experimentais e objectos sonoros, resultando numa abordagem artística única e inovadora.


Em Concerto para uma árvore, Mota cria um espectáculo imersivo e ritualista, onde o som emerge diretamente da natureza com o recurso de microfones de contacto. Ele recorre a instrumentos feitos a partir de árvores e outros elementos naturais, como o carvalho recolhido na Serra de Montemuro, demonstrando uma profunda ligação com o ambiente natural. Este concerto é um dos mais versáteis da sua carreira, adaptando-se a diferentes públicos e espaços, revelando a sua capacidade de transformar a natureza em música.

Este trabalho insere-se num ciclo criativo mais vasto do artista, que inclui projetos como o filme "7 Poemas para um Mundo Novo", o espectáculo "Passagem Secreta", e o livro-CD "Instrumentária Poética". Este ciclo caracteriza-se por uma pesquisa sobre a intersecção entre som, natureza e arte visual, refletindo uma fase em que o artista explora novas possibilidades musicais e temáticas.

A visualização deste concerto leva-nos a refletir sobre a experiência destes sons, mas, simultaneamente, a pensar nestes instrumentos como obras escultóricas. Fernando consegue um cariz multidisciplinar através da sua sensibilidade artística na criação da sua musicalidade.


Quem também não tem receio de fazer cruzamentos disciplinares é o Coletivo Suspeito com Ultrassom.

Este projeto conta com a colaboração de Maria R. Soares e Ricardo Nogueira Fernandes. Os elementos são ativados pelo movimento de Maria com a instalação que continha água e cujo movimento provocava vibrações na instalação.

Ao entrar no espaço de Ultrassom, a sensação imediata é de imersão num ambiente de fronteiras difusas entre corpo, tecnologia e som. O som não é apenas algo que se ouve. Ele atravessa-nos, mapeando o espaço ao redor, assim como os limites do nosso próprio corpo. Esta criação multidisciplinar, que reúne movimento, música e artes visuais, transporta-nos para um universo onde o movimento da intérprete parece emanar diretamente das frequências sonoras, como se fossem guiados pelas ondas ultrassónicas que ecoam pelo espaço.

O movimento é fluido, mas ao mesmo tempo preciso, quase como se estivesse a navegar num ambiente invisível, onde cada gesto é guiado por uma perceção que vai além do reino do visível. Tal como diversos animais utilizam frequências ultrassónicas para detetar obstáculos e alimentos, aqui o corpo humano é mapeado por ondas sonoras que se traduzem em imagens, numa fusão entre o biológico e o tecnológico.

O público, ao observar, é também levado a questionar a sua própria relação com o som e a vibração, não apenas como algo externo, mas como uma experiência profundamente interna. A forma como as ondas sonoras se convertem em imagens, projetadas em tempo real, cria um elo visual entre o corpo e o som, enquanto o movimento explora esta conexão de forma sensível. A cada movimento, parece haver uma análise subtil, um eco que procura vibrar com e para o público.


Quem também convida a pensar matéria é Vinicius Massucato em окрошка: okroshka, uma peça sensorial, onde bens alimentícios são metáfora de diversas camadas. A escolha do prato russo, okroshka (sopa russa) é o estímulo que cria este pós-paladar.

A fisicalidade crua e intensa molda o espaço, tal como os ingredientes moldam a receita. A interpretação transcende o texto e dota a linguagem corporal de significados. A tensão latente que perpassa as relações entre atores, alimenta-se da carga simbólica dos objetos. Os corpos são recipientes e sujeitos de transformação.

A manipulação do leite e do vinho é como um ritual. Um a remeter para uma pureza ambígua e o outro evocando celebração e decadência. Quando misturados produzem um efeito plástico além da mera representação da aludida sopa.

A música não é um complemento sonoro, mas uma ferramenta atmosférica, amplificando o impacto visual e físico da performance dotando-a de um clima quase hipnótico.

O que se destaca em окрошка: okroshka é a capacidade de transcender limites da performance convencional. Vinicius utiliza a comida, o corpo, o som e a imagem como veículos para uma experiência sensorial. Como numa okroshka, o espectador é convidado a misturar as suas próprias referências, sensações e reações para criar um prato estético único, onde o inesperado é o ingrediente principal.


O sino tocou 17 vezes, uma por cada partilha...

Nem sempre os sinos tocam para dar horas. Por vezes marcam,

não um fim, mas um até já.




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9 Sebastian, L. (2008). História da fundição sineira em Portugal. Museu Municipal de Coruche. Câmara Municipal de Coruche. (p. 103)

10 Participei neste projeto de dentro, enquanto pessoa que escreveu o texto com a criadora, pelo que, é perfeitamente legítimo que se considere uma observação interna. Não deixa de ser observação, mas por uma questão de honestidade prefiro que o leitor saiba que pode existir conflito de interesses na escrita sobre o trabalho.



04.09 — 07.09.2024 SANTA MARIA DA FEIRA ICC — IMAGINARIUS CENTRO DE CRIAÇÃO BCN — BALLET CONTEMPORÂNEO DO NORTE



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